quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Ardi tinha características humanas?

08 de dezembro de 2009 (www2.uol.com.br/sciam/)


Primata de 4,4 milhões de anos reacende debate sobre o andar ereto e o significado de pertencer à tribo dos humanos

por Katherine Harmon




 Para uma criatura tão pequena, “Ardi” (Ardipithecus ramidus), de 1,2m de altura, provocou grandes polêmicas no mundo da paleoantropologia. Essa descoberta significativa – anunciada 15 anos atrás e formalmente descrita na Science de outubro – aprofundou os debates acadêmicos sobre o surgimento do bipedalismo, a aparência de nosso último ancestral comum com os chimpanzés ede que forma alguns primatas antigos deram origem aos humanos modernos.

“Este é um fóssil fascinante, não importa de que lado se esteja da discussão,” comenta William Jungers, professor e chefe do Departamento de Ciências Anatômicas do Centro Médico da Stony Brook University, localizado em Long Island (NY, EUA). Na verdade, a análise da Science com 11 artigos acentuou ainda mais as diferenças, em vez de atenuá-las.

Os autores dos trabalhos, incluindo Tim White, da University of California, em Berkeley (EUA), propuseram que o Ardipithecus apresentava “um andar ereto eficaz” e que isso “soluciona muitas dúvidas em torno da evolução primitiva da humanidade, incluindo a natureza do último ancestral comum”. Entretanto, muitos outros especialistas da área sugerem que algumas dessas afirmações podem ser grandiloquentes. Para Jungers, “muitas das coisas ditas podem, na verdade, ter somente o propósito de impressionar”.

Assim, Ardi representa um verdadeiro passo em direção à hominização ou deve estar nas ramificações secundárias da árvore evolucionária? White e seus colegas não têm uma resposta definitiva; porém, por meio de análises meticulosas de dados provenientes do fóssil e das áreas próximas, concluem em seu artigo que “aparentemente, não há características únicas o suficiente para certificar a exclusão, de forma definitiva, do Ar. ramidus como ancestral do Australopithecus”. Assim, é proposto que o fóssil pode realmente ser um Hominina primitivo (nomenclatura, sempre em mudança, para o grupo que geralmente compreende os humanos modernos e nossos parentes próximos já extintos; também chamado, por White et al., de hominídeos – embora agora essa última denominação inclua com frequência os grandes primatas).

Porém, ainda mais difícil que reconstituir os ossos delicados e fragmentados do Ardipithecus pode ser a tarefa de situá-lo na história evolucionária da humanidade. E esse processo já se provou controverso.

Em razão de a adaptação para a postura ereta ser o símbolo tradicional dos humanos primitivos, muito do debate sobre o Ardipithecus gira em torno de como se encaixam os ossos de seus membros inferiores – em particular, a posição de seu ílio lesionado (a parte superior da pélvis, parecida com uma asa de borboleta). Dependendo da direção desse osso, há uma diferença de funcionamento dos músculos ao redor das articulações coxofemurais, explica o professor do Departamento de Antropologia da University of Toronto, David Begun.

O resumo de um dos artigos da Science, encabeçado por Owen Lovejoy, da Kent State University, localizada em Ohio (EUA), argumenta que, na época de Ardi, “os músculos glúteos foram reposicionados, de forma que o Ar. ramidus pudesse andar de forma ereta, sem ter que alternar lateralmente seu centro de massa” (ao contrário dos desajeitados grandes primatas modernos). Mas uma interpretação diferente para o ílio poderia mudar toda essa história.

Apesar das numerosas imagens e descrições divulgadas pelos pesquisadores, alguns estão relutantes em aceitar as reconstruções sem desconfiança. De acordo com Begun, “as peças podem até se encaixar perfeitamente, mas o fato é que se tomou como ponto de partida um espécime muito danificado, que resultou em algo muito parecido com um australopitecíneo” (grupo que inclui “Lucy”, o Australopithecus de 3,2 milhões de anos, assim como um Paranthropus de 2,7 milhões de anos). “É muito difícil não deixá-los parecidos com algo que já se tem em mente se houver alguma chance para isto”, conclui. Jungers também ressalta os perigos da reconstrução, a qual, em casos como o de Ardi, “requer muitas suposições”.

Enquanto a pélvis superior se parece com a de um humano primitivo, a parte inferior está mais próxima da de um primata quadrúpede não humano, acrescenta Jungers, que, recentemente, reuniu-se com White e examinou fotografias dos ossos. No entanto, White insiste que, após trabalhar com os fósseis propriamente ditos, não há como afirmar que eles pertençam a “um animal que não andasse apoiado com frequência em seus membros posteriores”, a menos que os dados “sejam deliberadamente ignorados ou que os tenhamos inventado”.

Ainda que a reconstrução do quadril de Ardi não convença a todos, seus pés podem fornecer evidências importantes sobre a locomoção de sua espécie. Em um dos artigos publicados na Science liderados por Lovejoy, o autor observa que “embora a anatomia podal do Ar. ramidus demonstre que a espécie ainda subisse em árvores, no chão andava de forma ereta”. De fato, os pés de Ardi indicam um conforto com a vida em árvores. Seu dedão do pé, referido como “notavelmente primitivo” por Jungers, é bem diferente – ainda mais que os dedões dos chimpanzés modernos –, o que auxiliaria na escalada.

Nenhum dos componentes conhecidos do pé do Ardipithecus, não importando o quão bem adaptado a escaladas estejam, o impede de andar ereto no chão. No entanto, Jungers crê que “não há realmente nenhuma manifestação de adaptação ao bipedalismo”. Na verdade, explica, muitos componentes do Ar. ramidus não o torna mais capaz de andar de forma ereta que os chimpanzés – um primata não reconhecido por White et al. como um modelo para a evolução primitiva humana.

Em um artigo conduzido por Lovejoy, os autores descrevem o Ardipithecus como um “bípede facultativo”: aquele que pode andar com as duas pernas, se assim for primordial (para, por exemplo, carregar algum objeto nos braços), mas não é necessariamente propenso a isto.

“Ironicamente, esta é a descrição de bipedalismo para chimpanzés”, declara Jungers – “eles são bípedes facultativos”. Por outro lado, o Homo eretus, que viveu cerca de 2,6 milhões de anos após Ardi, era bípede obrigatório. E o professor ressalta: “Até os humanos são escaladores facultativos”.

Não importa a maneira como os ossos de Ardi são encaixados ou reencaixados, o debate sobre como a espécie se comportava no chão não deverá se encerrar com análises mais profundas desse espécime. Mesmo com o descobrimento de centenas de ossos, ainda falta uma articulação do joelho. “Acho que essa articulação colocará um ponto final no assunto, de um jeito ou de outro”, prevê Begun. E a descoberta de mais alguns ossos do pé também não faria mal a ninguém, salienta Jungers.

Em vez de continuar o debate evolutivo abaixo do quadril, para Jungers as características mais importantes de Ardi podem estar acima dos seus ombros. “Se quisermos manter Ardi em nosso lado, precisamos abandonar o bipedalismo como a marca essencial para ser um Hominina, em sentido estrito”, escreveu o professor da Stony Brook University em um e-mail enviado a ScientificAmerican.com.

“Caso tivéssemos descobertos somente a parte acima do pescoço dos fósseis, é possível que não considerássemos Ardi um Hominina,” argumenta.

Entretanto, os vários pedaços de crânio encontrados pela equipe de pesquisadores ajudarão a pender o debate a favor do lado dos humanos primitivos. Em uma conversa com White, relata Jungers, o que compeliu aquele pesquisador a considerar Ardi como um passo inicial para a evolução humana foi a evidência dentária – especialmente os caninos superiores, menores e mais parecidos com os dos humanos que dos chimpanzés. Para os autores de um dos estudos publicados na ciência (liderado por White). Os pequenos caninos e a diferença mínima de tamanho entre machos e fêmeas da espécie são “indicativos de mínima agressão social”, escreveu os autores de um dos trabalhos publicados na Science (liderado por White). Se os machos não competiam pelas fêmeas por meio da agressão física, argumentou o coautor Lovejoy, eles poderiam estar mais envolvidos com a criação da prole – um componente-chave para a posterior evolução humana.

O crânio em si também levanta questionamentos acerca da analogia entre Ardi e outros antepassados nossos, como Lucy, por exemplo. Os autores dos artigos da Science ressaltam a pequena porção inferior da face do Ardipithecus, que não é tão proeminente quanto a do chimpanzé e tem um formato mais parecido com a do Australopithecus. Mas pesquisadores que não participaram dos estudos enfatizam a semelhança de tamanho com outros primatas não humanos, como os extintos macacos que viveram na época miocena.

White, no entanto, prefere considerar o espécime como um todo, taxando a análise intencionalmente fragmentada de “completamente hipotética e irreal”. Por e-mail, ele admite que “se só se tivesse achado uma falange intermediária, então não seria possível determinar as relações filogenéticas da espécie”, mas conclui que “as características da dentição, crânio e esqueleto pós-craniano... são todas compartilhadas exclusivamente pelo Ar. ramidus e hominídeos posteriores, excluindo-se, dessa maneira, todos os outros primatas extintos e existentes”. E garante: “mesmo sem o crânio e a dentição, ainda assim essa argumentação se sustentaria, em razão do compartilhamento de traços herdados no quadril e no pé”.

White e seus colaboradores não insistem na postura ereta como o único indicativo de Ardi e seu clado serem de fato humanos primitivos, mas enfatiza que, até agora, essa característica faz parte do contexto. Ele afirma que, embora a sua definição para integrantes da família Hominidae não “se baseie no bipedalismo per se”, a designação “parece consistente tanto com o bipedalismo quanto com a perda do complexo canino-pré-molar ocorrendo perto do momento da separação” entre as linhagens dos humanos e dos chimpanzés.

A muito um mistério evolucionário, o último antepassado em comum compartilhado por humanos e chimpanzés pode ter sido identificado, pelo menos parcialmente, pela descoberta do Ar. ramidus, argumentaram os autores do estudo sobre a espécie (contendo mais de 600 páginas) enviado a Science.

Ardi ajudou a estabelecer alguns debates importantes acerca dessa criatura crucial: por exemplo, se nossos antepassados primitivos andavam sobre seus pés da mesma maneira que os chimpanzés modernos (atualmente, supõe-se que provavelmente não). Mas, como Jungers salientou, já está antiquada a noção que os humanos evoluíram do chimpanzé (ou mesmo de uma criatura parecida com esse animal). Também, observa Begun, seria uma tarefa difícil determinar por meio de Ardi − com 4,4 milhões de anos − um modelo para o último ancestral comum, que viveu há cerca de 6 a 8 milhões de anos. “Do mesmo modo que para Tim [White] é ingênuo assumir” que os chimpanzés não tenham evoluído por milhões de anos, categoriza Begun, também é ingênuo pensar que Ardi conservou várias características de um ancestral comum.

Begun, assim como outros cientistas, estão mais cautelosos em propor uma posição para Ardi na linha humana direta que os pesquisadores envolvidos no projeto. Estes ressaltaram que, apesar de a espécie ser “substancialmente mais primitiva que o Australopithecus” (segundo escritos de um artigo liderado por White), “parece que ela... ocupou um platô basal adaptativo na história natural do hominídeo” (conforme observou outro artigo, desta vez coordenado por Lovejoy).

Embora seja difícil considerar Ardi como um parente próximo, também o é rejeitá-la. “Não acho injusto dizer que, neste momento, a posição filogenética precisa de Ardi é incerta e contestável”, comenta Jungers. Até White observa que “as três maiores possibilidades” são que o Ardipithecus está ou na linha humana, ou na dos chimpanzés ou antecede ambas. Ele explica: “Situamos a espécie no clado dos hominídeos [também conhecido como Hominina] com base em uma série de características evolutivas recentes por ela exclusivamente compartilhadas com todos os outros membros desse clado − os Australopithecus e Homo sapiens”.

Ao analisar os dados apresentados na Science, Begun pouco encontrou “na anatomia desse espécime que levasse diretamente ao Australopithecus, quanto mais ao Homo sapiens”. Ardi “poderia facilmente ser uma ramificação”.

Uma análise mais profunda da posição de Ardi na árvore genética dos primatas e de seu papel para o desenvolvimento do andar ereto pode ter que esperar até que os fósseis originais e suas peças sejam liberados a outros pesquisadores. “Estamos ansiosos para saber onde Ardi se encaixa”, exclama Jungers. O próprio White parece ansioso para que outros possam ver por conta própria a evidência na qual está confiante: “Convidamos esses pesquisadores a vir fazer uma observação comparativa atenta dos fósseis antes de tirarem conclusões sobre algo tão importante quanto o bipedalismo”.

Apesar da impaciência para se ver ao vivo Ardi e os outros espécimes, assim como para se resolver as questões sobre a condição de Hominina da espécie, a maioria dos pesquisadores elogia o importante trabalho envolvendo a escavação e análise dos fósseis. “O que eles fizeram foi incrível”, reconhece Jungers. A ampla documentação sobre o contexto que envolve o Ar. ramidus “estabeleceu um novo padrão”, que, segundo o professor, é “realmente extraordinário”.

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